ORELHA
Poderia ter escrito sobre o Museu de Évora, sobre o lago de Pushkar ou sobre as passarelas subterrâneas da Asa Norte... mas preferi o Conic. Talvez, apenas, porque daqui de um de seus últimos andares posso ver, sem muito esforço, de um lado, o Congresso, o lago, o telhado das mansões; do outro, a Torre de TV; ao norte, uma fileira de postes desbotados e, ao sul, uma procissão de árvores aniquiladas...
Buchada de vaca, livros didáticos, cascas de árvores, óculos, ecologistas, chefetes, intelectuais... atores correndo em direção à Faculdade Dulcina, policiais sonolentos, mulheres vadias que se arreganham ao sol como salamandras, agiotas, casas de umbanda, sex shops, barbeiros, salafrários, alfaiates, vaginófobos, jornalistas, pastores, travestis, ladrões, carregadores de gás, lixeiros, pasteleiros, músicos, religiosos, charlatães de toda ordem, cheiros de toda natureza, a trupe do Universo em Desencanto fazendo sua militância, enquanto, na porta da livraria Belas Artes, um homem desvairado procura piolhos na base de seu ninho de minhocaçu... Desempregados, vivaldinos, cargos de confiança, uma lésbica com um enorme panamá na mão direita, aposentados, espias, detetives, gigolôs, profissionais do black, freiras, cafés, guaraná em pó, o porteiro de um edifício limpando as cáries com a unha do dedo mindinho. Esse é um espetáculo a que se pode assistir aqui, no Conic, todos os dias, lá pelas onze e meia, neste aglomerado promíscuo de edifícios levantados no baixo-ventre desta cidade, ora imperatriz, ora meretriz... desta cidade que ainda, quando estava sendo construída, foi alvo de violentas objeções (abjeções?), objeções que bastou os partidos pactuarem entre si para desaparecerem... E as riquezas naturais foram rigorosamente divididas entre alguns pioneiros; seus filhos tiveram filhos, o capital rendeu capital, os crimes engendraram crimes, e a memória ordinária do populacho, como era de se esperar, não registrou mais nada...
“Neste país de felás o sr. Juscelino Kubitschek transforma-se num faraozinho. Eis por que se obstina em construir Brasília a passo de ganso. Brasília será seu túmulo.” [Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1957]
“Não é que Brasília não mereça a competência dos competentes. Não. Brasília merece. O que Brasília não merece é ser feita à hora dos incompetentes. E mais do que incompetentes: dos insensatos.” [Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 1957]
Hoje, cinquenta e tantos anos depois, flagramos as castas candangas, plena e narcisisticamente, entronizadas: os milionários ali, com seus meios de produção ou de especulação; a classe média acolá, com seus cargos, suas butiques e suas cátedras, e, no meio de tudo, em total demência, os párias. Cidade-patrimônio!!! Patrimônio de quê? Da leviandade, da crueldade? Urizen, Lucio Costa & Niemeyer... Poetas e candangos do granito! Líricos do cimento! Criadores de mundos e de cidades... de apartamentos com quartinhos de dois metros quadrados, com janelas minúsculas, como gaiolas, jaulas, prisões... Inventores de avenidas sem retorno, de cidades-satélites e de paredes indiscretas... Cidade-Papuda! Cidade-gavião! essa ave voluptuosa que, por aqui, com a cabeça levemente voltada para baixo, grita quase em desespero enquanto sobrevoa um exército de gorduchas ratazanas, com meio corpo enfiado nos esgotos, a outra parte para fora, cheias de pichorra, esperando que a noite caia... Lenin nos subterrâneos do Conic! um livro-creolina, uma odisseia à sombra, um texto erigido ao profanismo...
[EFB]