Brasília foi idealizada entre a matemática do planejamento e a mística da utopia. Que cidade é essa — lugar geométrico e compartimentado, traçado para poucos, uma dádiva a eleitos — que nasceu sob a promessa de se tornar terra prometida? E a massa de trabalhadores que veio erguê-la — os candangos, seus habitantes originais, de direito — por que não tomou parte nas escalas residencial, monumental, gregária e bucólica? Essas são perguntas que a própria cidade respondeu com uma expansão incontrolável. Hoje, há várias Brasílias em Brasília, abstratas, surgidas da rigidez do concreto. Em Sem plano nem piloto, exposição concebida para o Museu Nacional da República, o artista plástico Luis Jungmann Girafa, em uma catarse poético-visual, expõe uma Brasília imaginária e existencial, da invenção criativa à realidade vivida.
Também arquiteto, fotógrafo e cineasta, Girafa monta nesta exposição quatro ambientes provocativos: 1) Setor de Pentimentos, palavra essa que tem origem no italiano e significa “arrependimento” e que, nas artes plásticas, caracteriza um refazer do processo pictórico que o artista coloca em prática para cobrir aquilo que não considera satisfatório; 2) Praça dos sem Poderes, instalação sobre os descontornos do planejamento e da utopia, onde o quadro principal chama-se “Esplanada dos Mistérios”; 3) Eixe-o ou Deixe-o, espécie de câmara escura que metaforiza o projeto do Plano Piloto por meio de fotografias, de uma escultura orgânica e de uma linha gráfica conduzida pelo artista e percorrida por oito estagiários do museu; 4) Entreasas, expressão imagética intuitiva formada por pinturas e desenhos de várias épocas e pontuada por reticências fotográficas atuais.
Tudo isso expõe uma Brasília pensada livremente por um artista que a respira desde a infância, um filho do sonho utópico, e que com ela se desencantou, e se encantou novamente, e tornou a se desencantar, num ciclo infindável; uma Brasília pensada a partir de espaços recategorizados e não definidos, como, quem sabe, o Setor de Palavras de Ordem, o Setor de Direitos Ameaçados, o Setor de Deveres Esquecidos, o Comércio Local de Tumultos, a Área Especial de Incômodos, o Parque de Águas Passadas, o Eixo Desentendido, o Lago do Nada Azul; uma Brasília pensada pela ótica da desconstrução, uma Brasília notadamente sem plano nem piloto.
Renato Cunha
curador