ORELHA
A Siglaviva apresenta a edição comemorativa de 90 anos (1927-2017) de Um pobre homem, de Dyonelio Machado. Com dezessete contos e editado à época pelo também escritor gaúcho De Sousa Junior, esse livro marcou a estreia de Dyonelio na literatura, sendo o antecessor de Os ratos (1935), romance considerado por muitos sua obra-mestra.
Esta edição traz, além obviamente dos contos originais, revisados e com atualização linguística, alguns apensos que dialogam com a escrita inicial de Dyonelio: a) seus outros contos, oito pelo que se tem conhecimento, todos publicados em periódicos; b) uma fortuna crítica, inclusive com duas cartas de amigos, indo de 1927 a 1995, ano em que a editora Ática lançou a segunda edição; c) fac-símiles da primeira edição e de documentos do acervo do escritor; d) um texto autobiográfico que revisita o livro; e) um posfácio ensaístico de Camilo Mattar Raabe, especialista na obra dyoneliana; f) e, como suplemento, um depoimento de Erico Verissimo e uma poesia de Mario Quintana.
Há ainda fotos de Dyonelio, a partir dos anos 1920, com especial distinção para aquela que figura na quarta capa, pela lente de Eneida Serrano, fotógrafa gaúcha que, em 1976, realizou uma sessão com o então octogenário escritor para a editora Garatuja, por ocasião da segunda edição do romance Deuses econômicos. No mesmo ano, numa carta, o historiador e folclorista pernambucano Luiz Luna diria ao amigo e mestre literário que ali se revelava um “grande retrato de filósofo saxão, à altura da grandeza do autor, ilustre por todos os títulos”, e que seu desejo imediato fora arrancá-lo e emoldurá-lo, e pendurá-lo na parede, desejo, porém, do qual acabou declinando para não mutilar o livro.
Andréa Soler Machado, neta de Dyonelio, abre a edição com uma apresentação afetiva intitulada “Meu vô”, a qual humaniza o escritor e o faz caminhar fora das linhas da ficção, embora toda vida seja uma espécie de ficção, e toda ficção uma espécie de vida. Na sequência, um prefácio inédito de Dyonelio, escrito possivelmente, analisando-se as características do documento, nos anos 1930, antes de Os ratos, o que demonstra ali, naquele princípio de ofício, sua fé em Um pobre homem. (A primeira edição não contou com prefácio, e sim, ao final, com uma “advertência” assinada por De Sousa Junior.) Em 1995, na segunda edição, uma carta de 1927 do poeta gaúcho Zeferino Brasil — vide fortuna crítica — compõe o prefácio, ao ser introduzida por um texto de Dyonelio dos anos 1960 para os 70, ainda naquela antiga intenção de uma nova edição. Lá, ele diz que Zeferino, com caligrafia como que esculpida, a redigiu “em papel especial, dum azulado doce”.
Noventa anos idos, e fui impelido a conferir com os próprios olhos esse azulado doce, essa cor poética com que o memorialista mineiro Pedro Nava também nos instiga em Beira-mar (1978), na descrição de uma sala de histologia e anatomia patológica em que estudara, por coincidência, nos anos 1920: “muito clara pela manhã e dum azulado doce à hora da tarde”. Seria, assim, o azulado doce algo daquela era? Ou seria algo exclusivo de médicos... médicos escritores? Sim, Dyonelio era médico, psiquiatra. Bem, a carta original de Zeferino não foi encontrada. Tudo indica que não exista mais. Seu texto me veio por um datiloscrito, determinando que o azulado doce permanecesse literariamente literatura, numa parede vespertina, num papel fora do comum, agora desaparecido.
Renato Cunha
editor